Génese
ou história de uma história 	há qualquer coisa da pobre e breve infância, qualquer da felicidade  perdida que não se rencontra, mas também qualquer coisa da vida activa  de hoje, da sua pequena vivacidade incomprensivel sempre presente, e que  não se sabe como matar. 						                             					            F. Kafka
…deita rosas no abismo e diz: “aqui está o meu  agradecimento ao monstro que não me conseguiu engolir”
F.  Nietzsche, Fragmentos Póstumos
1. 	“Aquilo que num tempo foi comprendido num tempo foi esquecido. Até ao  ponto em que já ninguém se apercebe de que a história não tem época. De  facto nada acontece. Já não existe o evento. Existem só noticias. Olhar  os personagens que chefiam o império. E arruinar o mote de espinoza.  Nada a comprender, só a chorar, ou a rir”
M. Tronti, La politica al  tramonto
1 bis. 	Acabou o tempo dos heróis. Desapareceu o espaço épico do conto que nos  apraz contar e que nos apraz ouvir, que nos fala daquilo que poderiamos  ser mas não somos. O irreparável é hoje o nosso ser-assim, o nosso  ser-ninguém, o nosso ser Bloom.1
2. 	Não é agora o tempo de sonhar aquilo que seremos, aquilo que faremos,  agora que podemos ser tudo, que podemos fazer tudo, agora que nos é  concedida toda a nossa potência, com a certeza de que o esquecimento da  alegria nos impedirá de a dispersar.  É aqui ao ocorre abandonar-se ou  morrer. O homem é verdadeiramente algo que deve ser superado, mas para  isso deve antes ser ouvido naquilo que tem de mais exposto, de mais  raro, para que o que resta não se perca na passagem. O Bloom, residuo  ridiculo de mundo que não pára de o trair e de exilá-lo, exige fazer as  bagagens: exige o exôdo.
2 bis. 	Do fundo deste exilio provêm todas as vozes, e neste exilio se perdem. O  outro não nos acolhe, reenvia-nos ao outro que há em nós. Abandonamos  este mundo em ruinas sem remorsos e sem piedade, empurrados de um vago  sentido de pressa. Abandonamo-lo como ratos que deixam um navio, sem que  saibam se está ancorado a um porto. Nada de “nobre” nesta fuga, nada de  grande que possa ligar-nos uns aos outros, no fim permanecemos sós com  nós próprios, porque não decidimos combater mas conservarmos-nos. E isto  não será ainda uma acção, mas uma reacção.
3. 	Uma multidão de homens que foge é uma multidão de homens sós.
4. 	Não se encontrar é impossivel: os destinos têm o seu próprio clinamen2.  Mesmo no leito da morte, na ausência de nós próprios, os outros não  param de sev chocar no terreno liminare da fuga. Nós e os outros: separamos-nos por desgosto, mas não conseguimos unirmos  por escolha. E no entanto encontramos-nos unidos, unidos e fora do  amor, ao descoberto e sem proteção reciproca. Assim éramos antes da  fuga. Assim somos desde sempre.
5. 	Não queriamos apenas fugir, ainda que tenhamos deixado este mundo  porque nos parecia intolerável. Sem cobardia: fizemos as malas. O que  queriamos não ela lutar contra um qualquer, mas com um qualquer. E agora  que não estamos mais sós calaremos esta voz que vem de dentro, para  alguns seremos Companheiros, não seremos mais os indesejáveis. Será necessário o esforço, será necessário o calar, porque até agora  ninguém nos quis, agora as coisas mudaram. Não fazer perguntas, aprender  o silêncio, aprender a aprender. Porque a liberdade é uma forma de  disciplina.
6. 	A palavra faz-se antes, prudente, prenche os espaços entre as  singulares solidões, dilata os agregados humanos em grupos, empurra-os  juntos contra o vento, o esforço reune-os. É quase un exodo. Quase. Mas  nenhum caminho os mantem juntos, se não a espontaneidade dos sorrisos, a  crueldade inevitável, os acidentes de paixões.
7. 	Esta passagem, parecida com aquela dos pássaros migrantes, ao murmúrio  das dores errantes, dá pouco a pouco forma ás Comunidades Terriveis.
Efectividade 	 	do porquê é que a esquizofrenia é mais do que uma doença 	e de como, mesmo sonhando com o extâse, se chega á endovigilância.
1. 	“Dizem-nos: o esquizofrénico também tem uma pai e uma mãe? Lamentamos  responder Não, pelo menos enquanto tal: tem somente um deserto e as  tribos que lá habitam, um corpo cheio e multiplicidades que se atacam  entre elas”.
G. Deleuze, F. Guattari, Mille Piani
1 bis. 	A COMUNIDADE TERRIVEL é a única forma de comunidade compativel com este  mundo, com o Bloom. Todas as outras comunidades são imaginárias, não  impossiveis mas possiveis só a momentos e, de qualquer modo, nunca na  plenitude da sua actuação. Emergem nas lutas e são então heterotopias,  zonas opacas ausentes de qualquer cartografia, perpetuamente em acto de  constituição e em via de desaparecimento.
2. 	A COMUNIDADE TERRIVEL não é só possivel; é já real, está já activa. É a  comunidade dos que sobram. Nunca é potente, não tem devir nem futuro,  nem fins verdadeiramente externos a si, nem desejo de se tranformar em  outra coisa, só desejo de persistir. É a comunidade do atraiçoamento,  luta contra o seu próprio devir: trai-se sem se transformar nem  verdadeiramente transformar o mundo à sua volta.
2 bis. 	A COMUNIDADE TERRIVEL é a comunidade dos Bloom, porque no seu interno  nenhuma desubjectivização tem direito a existir. De fora, para lá entrar  é primeiro preciso meter-se entre parentesis.
3. 	A COMUNIDADE TERRIVEL não existe, senão nos dissensos que  momentaneamente a atravessam. No resto do tempo a comunidade terrivel  simplesmente é, eternamente.
4. 	APESAR DISTO, a comunidade terrivel é a unica a encontrar-se dado que o  mundo, enquanto lugar fisico do comum e da condivisão, desapareceu e  dele não resta que uma Quadrillage imperial a percorrer. A mentira do  “homem” já não encontra mais mentirosos que a afirmem. Os não-homens, os já-não-homens, os bloom renunciaram a sonhar, habitam  distopias organizadas, lugares sem lugar, intersticios sem dimensão das  utopias mercantis. São planos e unidimensionais porque, não se  reconhecendo em lugar algum, nem em si próprios nem nos outros, não  reconhecem nem o seu passado nem o seu futuro. Dia após dia a sua  resignação apaga o presente. Os já-não-homens populam a crise da  presenza.
5. 	O TEMPO da comunidade terrivel é espiraloforme e de consistência  viscosa. É um tempo impenetrável no qual a forma-projecto e a  forma-hábito se penduram sobre a vida deixando-a privada de  profundidade. Podemos definilo como o tempo da liberdade ingénua, no  qual todos fazem aquilo que querem. Porque é impossivel querer algo para  além do que já existe. 	Podemos dizer que é o tempo da depressão clinica, ou o tempo do exilio e  da prisão. É uma espera sem fim, um esticar uniforme de  descontinuidades desordenadas.
6. 	O CONCEITO DE ORDEM na comunidade terrivel foi abolido para dar lugar à  efectividade da relação de força  e ao conceito de forma para vantágem  da prática da formalização, que, não tendo controle sobre os conteúdos à  qual se aplica, é eternamente irreversivel. Á volta de falsos rituais,  falsos prazos (manifestações, férias, assembleias várias, reuniões mais  ou menos festivas), a comunidade coagula-se e formaliza-se sem nunca  tomar forma. Porque a forma, sendo sensivel e corruptivel, expõe ao  devir.
6 bis. 	NO SEIO da comunidade terrivel a informalidade é o meio mais apropriado  à construção inconfessada de impiedosas hierarquias.
7. 	A REVERSEBILIDADE é o signo sob o qual se coloca cada evento que tem  lugar na comunidade terrivel. 	Mas é esta mesma reversibilidade, com o seu séguito de medos e de  insatisfações, que é irreversivel.
8. 	O TEMPO da reversebilidade infinita é um tempo ilegivel, não-humano. É o  tempo das coisas, da lua, dos animais, das marés, não dos homens, e  muito menos dos já-não-homens, porque estes últimos já não são capazes  de pensar, enquanto os outros ainda conseguiam 	o tempo da reversibilidade não é mais do que o tempo daquilo que é  irreconhecivel a si próprio.
9. 	PORQUE não abandonam os homens a comunidade terrivel –  perguntar-se-á.  Podemos responder que é devido ao facto de que o mundo já-não-mundo é  ainda mais inabitável do que esta; mas cairiamos na armadilha das  aparências, numa verdade superficial, porque o mundo é tecido da mesma  inexistência agitada da comunidade terrivel: há entre eles uma  continuidade escondida que para os habitantes do mundo e para aqueles da  comunidade terrivel continua indecifrável.
10. 	AQUILO que é sublinhado é que o mundo extrai a sua própria existência  minima, que nos consente de decifrar a inexistência substancial da  existência negativa da comunidade terrivel (por marginal que possa ser) e  não, como se poderia crer, o contrário.
11. 	A EXISTÊNCIA NEGATIVA da comunidade terrivel é em última análise uma  existência contra-revolucionária, já que defronte á subsistência  residual do mundo contenta-se de querer só uma maior plenitude.
12. 	A COMUNIDADE TERRIVEL é terrivel porque se autolimita, ainda que não  repouse en nenhuma forma, porque não conhece o extase. Raciocina com as  mesma categorias do mundo já-não-mundo, sem que nem sequer tenha razões  para o fazer. Conhece os direitos e as indiferenças , mas codifica-as na  base de uma falta de coerência do mundo que contesta. Critica a  violação de um direito, mete-a a descoberto, chama a atenção. Mas quem  estabeleceu (e violou) tal direito? O mundo ao qual se recusa pertencer.  E dirige o seu discurso à atenção de quem? Do mundo que nega.  O que  deseja então a comunidade terrivel? O melhoramento do estado actual das  coisas. E o que deseja o mundo? A mesma coisa.
13. 	A DEMOCRACIA é o caldo de cultura de cada comunidade terrivel. O mundo  já-não-mundo é o mundo no qual o litigio original e fundador do politico  se desvanesce em favor de uma visão festora da vida e do vivente, o  biopoder. Neste sentido, a comunidade terrivel é uma comunidade  biopolitica porque também essa fundamenta a sua unanimidade massiça e  quase militar no apaziguamento do litigio fundador do politico, o  litigio entre formas-de-vida. A comunidade terrivel não pode permitir  que no seu seio exista um bios, uma vida não conformada conduzida  livremente, pode só permitir uma sobrevivência nos seus ranques. Do  mesmo modo a continuidade escondida entre a democracia e as comunidade  terriveis depende do facto de que entre os dois o litigio foi abolido,  impondo uma unamidade que é ao mesmo tempo desigualmente condivisa e  violentamente reclusa numa colectividade que deve tornar possivel a  liberdade. Acontecerá então, paradoxalmente, que os ranques da  democracia biopolitica sejam mais confortáveis do que os das comunidades  terriveis, já que o campo de jogo, a liberdade dos sujeitos e as  constrições impostas pela forma politica são, num regime de verdade  biopolitica, inversamente proporcionais.
14. 	QUANTO MAIS um regime de verdade biopolitica pretenda uma abertura à  liberdade, mais será um regime policial e, delegando à policia o dever  de reprimir as insubordinizações, mais deixará os seus sugeitos num  estado de relativa inconsciência, de quase-infância. Para compensar, num  regime de verdade biopolitica no qual se pretende realizar a liberdade  sem meter em discussão a forma, exigir-se-á dos que participam que  introduzam a policia no próprio bios, com o potente protesto de que não  existe outra escolha. 	Escolher a pseudo-liberdade concedida pelas democracias biopoliticas –   quer seja por necessidade, por jogo ou por sede de prazer – por quem  fez parte de uma comunidade terrivel equivale a uma degradação ética  real, porque a liberdade das democracias biopoliticas não é outra que a  de se poder comprar e de se poder vender.
15. 	DO MESMO MODO , do ponto de vista das democracias biopoliticas  unificadas em Império, aqueles que se alinham com as comunidades  terriveis passam de um regime politico de troca mercantil (de gestão) a  um regime politico militar (de repressão). Agitando o espectro da  violência policial, as democracias biopoliticas conseguem militarizar as  comunidades terriveis, a tornar a sua disciplina interna ainda mais  dura do que noutros sitios; e isto com o fim de produzir um crescendo  que torne eventualmente preferivel a mercadoria à luta; a liberdade de  circulação, entusiasticamente recomendada da policia e da propaganda  mercantil – “circular, aqui não há nada a ver!” – à liberdade de ver o  outro, o confronto, por exemplo. 	Para aqueles que aceitam trocar a liberdade mais altas, a de poder  lutar, pela liberdade mais reificada, aquela de comprar, há vinte anos  que as democracias biopoliticas dispõem confortáveis postos de  empreendedore biopolitico absolutamente em voga, enquanto não proliferam  universalmente os fight clubs, os ginásios, as agências de publicidade,  os bares na moda cresceram exponecialmente com as carrinhas de bófias. E  as comunidades terriveis serão o modelo desta nova mudança da evolução  mercantil.
16. 	Comunidades terriveis e democracias biopoliticas podem coexistir numa  relação vampiresca, ambos vivem a si próprios como mundos já-não-mundos,  isto é, como mundos sem exterior. O seu ser-sem-exterior não é uma  convenção terrorista agitada para garantir a fidelidade dos sugeitos que  fazem parte da democracia biopolitica ou da comunidade terrivel, mas é  uma realidade na medida em que se tratam de duas formações humanas que  sobrepõem quase completamente. 	Não há partecipação consciente na democracia politica sem uma  participação inconsciente numa comunidade terrivel, e vice-versa. A  comunidade terrivel não é só uma comunidade de contestação social ou  politica , uma comunidade militante, mas tendencialmente é tudo aquilo  que procura esistir como comunidade no interno da democracia biopolitica  (a empresa, a familia, a associação, o grupo de amigos, o bando de  adolescentes. E isto na medida em que cada condivisão sem fim – em ambos  os sentidos da expressão – é uma ameaça efectiva à democracia  biopolitica, que se funda numa separação em que os seus sugeitos já não  são nem sequer individuos, mas dividuos divididos entre duas  participações necessárias e também contraditórias, a comunidade terrivel  e a democracia biopolitica. No mesmo modo uma das duas participações  deve ser vivida como clandestina, indigna, incoerente. 	A guerra civil, expulsa da publicidade, refugiou-se no interno dos  dividuos. A linha da frente, que já não passa no meio da sociedade,  coloca-se agora no meio do bloom. O capitalismo exige a esquizofrenia.
17. 	O PARTIDO IMAGINÀRIO é a forma que assume esta esquizofrenia quando se  torna ofensiva. Está-se no partido imaginário não quando não se está na  comunidade terrivel ou na democracia biopolitica, mas quando se age para  destruir ambos.
18. 	AQUILO QUE SE DEFORMA deforma-se, mas não pode ser destruido. E no  entanto a vida entre os massacres não é só possivel, mas efectivamente  presente. A inteligência superior do mundo está na comunidade terrivel. A  salvação do mundo enquanto mundo, que persiste no seu estado de  relativa decomposição, residirá portanto no adversário que jurou  destrui-lo. Mas como poderia este adversário destrui-lo, se não pagando o  preço do seu próprio desaparecimento enquanto adversário? Poderia,  dizem-nos, constituir-se positivamente, fundar-se, dar-se leis próprias.  Mas a comunidade terrivel não tem vida autonoma, não encontra em lado  algum o acesso ao devir. É só a ultima astúcia de um mundo em  desagregação para sobreviver mais um pouco.
Afectividade
do porquê do frequente desejo por aquilo que faz a  nossa infelicidade (tanto que se chega a ter saudades dos belos tempos  dos casamentos combinados). 	e da razão de as mulheres não dizerem aquilo que pensam. 	fala-se também da insuficiência das boas intenções. 	Atenção! Capitulo de leitura perigosa já que todos são postos em causa.
GIOCASTA O que é o exilio? De que sofre o exilado? POLINICE Do pior dos males: de não poder dizer a verdade GIOCASTA É de escravo não poder dizer o que se pensa. POLINICE E dever dobrar-se perante a imbecilidade de quem comanda… GIOCASTA Sim, é isto, fazer de estúpido entre os estúpidos POLINICE Por interesse violenta-se o próprio temperamento.
Euripide, AS  FENICIAS
1. 	A PARREHSIA é o uso perigoso, afectual do discurso, o acto de verdade  que mete em discussão as relações de poder assim como elas são hic et  nunc na amizade, na politica, no amor. O parrhesiastes não é aquele que  que diz a verdade mais dolorosa para destruir as ligações que unem os  outros e que se fundam na recusa de aceitar essa verdade como  invencivel. Quem faz uso da  parrehsia mete em perigo em primeiro lugar a si próprio, expondo-se nos  tecidos relacionais. A parrehsia é o acto de verdade que esclarce um  ponto de vista superior em relação às coisas.  	Onde a parrehsia não é possivel, o seres estão em exilio, agem como  escravos. Ainda que, para quem nela habita, a comunidade terrivel é como  uma catedral no deserto, é no seu interior que se sofre o exilio mais  amargo. Porque enquanto máquina de guerra unilateral, que deve manter um  equilibrio homeostático vital com o exterior, a comunidade terrivel não  pode tolerar que nos seus ranques possam circular discursos perigosos  para si própria. Para se poder perpetuar a comunidade terrivel tem a  necessidade o perigo ao seu exterior: será o Estrangeiro, a  Concorrência, o Inimigo, os Bófias. Assim a comunidade terrivel aplica  no seu interior o mais rigido policiamento discursivo, tornando-se na  propria censura.
2. 	ONDE A PALAVRA muda da repressão faz ouvir a sua voz, nenhuma outra  palavra tem direitos de cidadania enquanto estiver excluida de uma  efectividade imediata. A comunidade terrivel é uma resposta à afasia que  todos o regime biopolitico impõe, mas é uma resposta insuficiente  porque se perpetua por censura interna, reproduzindo assim a ordem  simbólica do patriarcado. Portanto, muitas vezes não é mais que uma  outra forma de policia, um outro lugar no qual se permanece no  analfabetismo emocional ou num estado de menoridade infantil, com o  pretexto de uma ameaça externa. Porque a a criança não é tanto aquele  que não fala, mas aquele que é excluido dos jogos de verdade.
3. 	O MUNDO JÀ-NÃO-MUNDO, este mundo esquartejado vive na autocelebração  patética que se chama, ainda, “espectáculo”. 	O espectáculo roça o dúbio, reduz a consciência a uma passividade  anestisiante. Aquilo que a democracia biopolitica pede à consciência é  de ajudar à destruição, não enquanto destruição efectiva, mas enquanto  espectáculo. Enquanto a comunidade terrivel pede que se ajude à  destruição enquanto destruição, de modo a alterná-la, para que possa  durar, com breves periodos de reconstrução colectiva.
3 bis. 	NÃO HÁ NENHUM DISCURSO de verdade, há só dispositivos de verdade. O  espectáculo é o dispositivo de verdade que consegue fazer funcionar em  sua vantagem qualquer outro dispositivo de verdade. Espectáculo e  democracia biopolitica convergem no aceitar de qualquer regime de  discurso falso, pronunciado por qualquer sujeito, que permita o  perpetuar da paz armada vingente. A proliferação das insignificâncias  visa cobrir toda a extensão do existente.
4. 	A COMUNIDADE TERRIVEL conhece o mundo, mas não se conhece. Isto porque  é, no seu aspecto afirmativo, um ser não reflexivo, mas estagnante. Para  compensar, no seu aspecto negativo, existe na medida em que nega o  mundo, e portanto a si própria, sendo feita à sua imagem. Não há nenhuma  consciência para cá da existência, e nenhuma autoconsciência para cá da  actividade, mas sobretudo, não há consciência na actividade de  inconsciente autodestruição. A partir do momento em que a comunidade  terrivel se perpetua agindo sobre o olhar hostil do outros, absorvendo  este olhar como objecto e não como sujeito de tal hostilidade, esta pode  amar e odiar só   por reacção.
5. 	A COMUNIDADE TERRIVEL é um aglomerado humano, e não um grupo de  companheiros. Os membros da comunidade terrivel encontram-se e  agregam-se infelizmente mais por acaso do que por escolha. Não se  acompanham, não se conhecem.
6. 	A COMUNIDADE TERRIVEL é atraversada de todos os tipos de cumplicidades –  como poderia sobreviver de outra maneira? – mas diversamente dos  antepassados dos quais se reinvidica herdeira, tais cumplicidades não  determinam em nenhum caso a sua forma. A sua forma é no entanto a  desconfiança. Os membros da comunidade terrivel desconfiam uns dos  outros, porque nada conhecem nem de si nem dos outros e porque nenhum  deles conhece a comunidade da qual faz parte: trata-se de uma comunidade  da qual não há conto possivel, portanto impenetrável e impossivel de  expremir senão na imediateza inorganica, mas ainda, é uma imediateza  inorganica, que não revela nada. A exposição que ali se pratica é  mundana e não politica: até na solidão heróica do amotinado aquilo que  se estima é o seu corpo em movimento e não a coerência entre este corpo e  o seu discurso. Razão pela qual a clandestinidade, o passa-montanha e o  jogo da guerra fascinam e enganam ao mesmo tempo: o policia provocador é  também ele um amotinado…
6 bis. 	“TERÀ QUE SE LIDAR com um dispositivo de desconfiança total e  circundante, porque não há nenhum ponto absoluto. A perfeição da  vigilância é uma soma de malevolências”.
M.Foucalt em  Panóptico
7. 	TODAVIA DADO QUE as cumplicidades existem, os membros das comunidades  terriveis suspeitam que exista também um projecto, o qual porém lhes  escapa. Daqui nasce a desconfiança. A desconfiança que sentem  reciprocamente os membros da comunidade terrivel é muito maior dauqela  que nutrem em relação os cidadãos do resto do mundo: estes últimos, na  verdade, não se escondem do facto de terem muito a esconder, conhecem a  imagem que é suposto terem e foerecerem ao mundo do qual fazem parte.
8. 	SE APESAR do seu panoptismo interno, a comunidade terrivel não se  conhece, é porque não é conhecivel, e nesta medida, e tão perigosa para o  mundo quanto para si própria. É a comunidade da inquietude, mas desta  inquietude é também a primeira vitima.
8 bis. 	A COMUNIDADE TERRIVEL é uma soma de solidões que se vigiam sem se  proteger.
9. 	O AMOR entre os membros da comunidade terrivel é uma tensão inexausta  que se nutre daquilo que o outro vela e não revela: a sua banalidade. A  invisibilidade da comunidade terrivel a si própria consente-a de amar-se  a si própria.
10. 	A PRÓPRIA IMAGEM pública exterior é aquilo que interessa menos à  comunidade terrivel, porque é consciente de ser postiça. Igualmente  enganadora é a imagem de si que a comunidade invisivel difunde no seu  interior, mas da qual ninguém se deixa enganar. 	Porque aquilo que mantém junta a comunidade terrivel é aquilo que se  encontra para cá da própria publicidade, aquilo que apenas deixa ver aos  seus membros e apenas deixa adivinhar ao exterior. É informada da  banalidade do seu privado, do vazio do seu segredo e do segredo do seu  vazio; por isto, para perpetuar-se, produz e segrega a comunidade  pública.
10 bis. 	A BANALIDADE DO PRIVADO das comunidades terriveis esconde-se porque  essa banalidade é a banalidade do mal.
11. 	A COMUNIDADE TERRIVEL não repousa em si própria, mas no desejo que o  exterior lhe põe eem cima, que toma inevitavelmente a forma de  mal-entendido.
12. 	A COMUNIDADE TERRIVEL, como todas as formações humanas nas sociedades  capitalistas avançadas, funciona com uma economia de prazer  sado-masoquista. A comunidade terrivel, diversamente de tudo o resto,  não admite o próprio masoquismo fundamental, e os desejos nos quais  participa prendem-se a este mal-entendido. 	O “selvagem” suscita desejo, mas este desejo é um desejo de  domesticação, e portanto de aniquilição; assim como a criatura comum,  confortavelmente sentada no próprio quotidiano, é erótica só na medida  em que se quereria manchar-lhe irreparavelmente a pureza. O facto que  este metabolismo emotivo continue escondido é uma continua fonte para os  membros da comunidade terrivel, que se tornam incapazes de avaliar as  consequências dos seus gestos afectivos (consequências que desmentem  constantemente as suas previsões). Os membros das comunidades terriveis  desaprendem assim progressivamente a amar.
13. 	A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL no seio da comunidade terrivel funda-se na  humilhação sistemática, na pulverização da autoestima dos seus membros.  Ninguém se pode crer portador de uma forma de afectividade que tenha  direitos de cidadania na comunidade. O tipo hegemónico de afectividade  no interior da comunidade terrivel corresponde paradoxalmente à forma  que no exterior é percebida como a mais atrasada. 	A tribo, a vila, o clan, o grupo, o exércio, a familia são  universalmente reconhecidos como as formações humanas mais crueis e  menos gratificantes, mas persistem, obstante tudo, no interior da  comunidade terrivel. As mulheres devem assumir um tipo de virilidade cho  hoje em dia nas democracias biopoliticas até os machos recusam; e tudo  isto percebendo-se como mulher de feminilidade defeituosa em relação à  fantasia masculina dominante  também no seio da comunidade terrivel, que  é a mulher plástica e “sexy” (a imagem de puro invólucro de carne que é  a jeune-fille) a uso e consumo da sexualidade genital.
14 bis. 	EM CADA comunidade terrivel acontece a experiência do estupefacente  silêncio das mulheres. De facto, a patofobia da comunidade terrivel  manifesta-se regularmente como repressão indirecta da palavra femenina,  estranha e inquietante porque palavra de carne. Não é que se façam calar  as mulheres; simplesmente a fronteira com a loucura, na qual a sua  palavra de verdade se poderia dar, é directamente apagada dia após dia.
15. 	“NÃO É QUE AS MULHERES demorassem mais a cumprir as acções: elas eram  as mais corajosas, mais capazes, mais preparadas e mais motivadas que os  homens. Mas era-lhes concedida menos autonomia no plano da iniciativa:  era como se florescece instintivamente uma diferença na preparação e nas  discussões colectivas, e o seu voto contasse menos. O problema estava  no grupo: era um comportamento anódino, um silêncio, ou mesmo um “está  calada!” lançado em plena discussão [...] Esta espécie de descriminação  não era o resultado de uma discussão prévia, era algo que vinha do  externo, em parte inconscientemente, algo que estava para lá da vontade.  Algo que não se podia resolver com uma declaração ideológica ou com uma  escolha racional”.                   		                                                 I. Faré, F. Spirito,  Mara e le altre
15 bis. 	SENDO QUE A COMUNIDADE TERRIVEL se baseia em relações inconfessadas,  acaba inevitavelmente por se afundar nas relações mais residuais e  “primitivas”. As mulheres estão destinadas à gestão das coisas  concretas, das tarefas comuns, e os homens à violência e à direcção.  Nesta esquálida reproducção de já obsoletos clichés sexuais, a única  relação possivel entre um homem e uma mulher é uma relação de sedução,  mas como a sedução generalizada poderia levar á explosão da comunidade  terrivel, esta é severamente conduzida na forma do casal, heterosexual e  monogâmico, que é dominante.
16. 	“É  VERDADE QUE OS GRUPOS se desgastam por acção de forças muito  diversas, que produzem neles núcleos internos de tipo conjugal e  estatal, e que os levam a uma outra forma de socialidade, preenchendo os  afectos de rebanho  com sentimentos familiares ou intelegibilidade de  Estado. O centro ou os buracos negros internos exercem a função  principal. Nisto o evolucionismo pode ver um progresso, na aventura que  acontece também aos grupos humanos quando reconstituem um familiarismo  de grupo, ou também um autoritatismo, um fascismo de rebanho”.
G. Deleuze, F. Guattari, Mille Plateaux
16 bis. 	TAMBÈM AS AMIZADES, no seio da comunidade terrivel, reentram no  imaginário estilizado e raquitico que contradistingue cada sociedade  heterosexual e monogâmica. Pois que as relações interpessoais nunca  devem ser postas em discussão  e são obrigadas a “ser expiadas”?? , a  questão das relações homem-mulher não deve ser tocada e é  sistematicamente resolvida “à antiga”, de maneira proto-burgues ou  vetero-proletária. As amizades permanecem então rigorosamente  monosexuais, homens e mulheres desgastam-se numa inderrotável  estranhidade, que lhes permitirá, no momento certo, de formar  eventualmente um casal.
17. 	O FAMILIARISMO não implica de modo algum a existência de familias  reais; aliás, a sua difusão maciça acontece no momento mesmo no explode a  familia enquanto entidade fechada, contaminando por reacção toda a  esfera de relaçõas que até agora lhe escapavam. “O familiarismo consiste  no negar magicamente a realidade ocial, no evitar todas a conecções com  os fluxos reais” (F. Guattari, A Revolução Molecular). Quando a  comunidade terrivel, para se reassegurar, nos diz que no fundo não é  mais do que “uma grande familia”, volta-nos á ideia o arbitrio, a  reclusão, a moleza e o moralismo que acompanharam a instituição familiar  na sua existência histórica; só que agora, com o pretexto de nos  preservar, tudo isto é imposto sem a instituição, isto é, sem a  possibilidade de o denunciar.
17 bis. 	A PARTE DE HUMILHAÇÃO e de vilificação dos homens consiste na obrigação  de exibir constantemente as próprias capacidaes numa qualquer forma de  perfomance virilóide. O Contratipo não tem espaço na economia afectiva  da comunidade terrivel, na qual só o estereotipo, em última análise  prevalece, só o lider é objectivamente desejável. Qualquer outra posição  é insustentável sem admitir implicitamente uma incapacidade congénita  de existir singularmente; mas os despojos relativos aos estéreotipos são  alimentados sem pausa pelo impiedoso metabolismo afectivo  da  comunidade terrivel. Quando o Contratipo, por exemplo, procurar  disfarçar-se de si próprio, será empurrado com violência para dentro da  cela da mesma “insuficiência”. O contratipo-bode expiatório funciona  para todos como um espelho deformante, que reassegura perturbando. 	Implicitamente, permanece-se na comunidade terrivel para não ser nem o  Lider nem o contratipo, enquanto eles permanecem porque não têm escolha.
18. 	TODA A COMUNIDADE TERRIVEL tem o seu lider, e vice-versa.
18 bis. 	EM TODOS OS LUGARES ONDE AS RELAÇÕES não são problematizadas, as formas  antigas reflorescem em toda a potência da sua brutalidade adiscursiva: o  forte prevalece sobre o fraco, o homem sobre a mulher, o adulto sobre a  criança e assim por diante.
19. 	O LIDER não necessidade de se afirmar, pode até brincar e fingir que é o  contratipo ou ironizar a sua virilidade. O seu carisma não tem  necessidade de performances, porque é objectivamente suportado pelos  parametros biométricos dos desejos da comunidade terrivel e da efectiva  submissão dos outros homens e mulheres.
20. 	O SENTIMENTO FUNDAMENTAL que liga a comunidade terrivel ao seu Lider  não é a submissão mas a disponibilidade, isto é, uma variante  sofisticada da obediência. O tempo dos membros da comunidade terrivel  deve continuamente passar pela peneira da disponibilidade: potencial  disponibilidade sexual relativa ao Lider, disponibilidade fisica para as  mais diversas tarefas, disponibilidade afectiva para suportar qualquer  mazela devida à inevitável distracção dos outros. Na comunidade terrivel  a disponibilidade é um desenvolvimento artistico da disciplina.
21. 	TANTO O DESEJO do Lider como o desejo de ser Lider sabem estar  condenados a um fracasso invitável. Porque a mulher do Lider (todos o  sabem) é a única a não ser victima da sua pantonima sedutora, na medida  em que verifica quotidianamente o vazio: o privado dos dominantes é  sempre o mais miserável. De facto o Lider é desejável no interior da  comunidade terrivel como o é uma mulher altiva e sofisticada na  democracia biopolitica. O desejo sexual que os homens e as mulheres  dirigem ao Lider, e que lhe investe uma aura tão intensa que faz com que  os olhares se voltem espontaneamente para ele, não é mais do que um  desejo de humilhação. Deseja-se desnudar o Lider, ver o Lider satisfazer  verdadeiramente e sem dignidade a parada de desejos que suscita para  prevalecer. Todos odeiam o Lider, como os homens odeiaram as mulheres  por milénios. No fundo todos desejam domesticar o Lider, porque todos  detestam a fidelidade que lhe é velada.
CADA UM DETESTA O PRÓPRIO  AMOR PELO LIDER.
22. 	O PESSOAL, na comunidade terrivel, não é politico.
23. 	O LIDER é sempre um homem porque age em nome do Pai.
24. 	AGE EM NOME do Pai aquele que se sacrifica. O Lider é, na verdade,  aquele que perpetua a forma sacrificial da comunidade terrivel com o  próprio sacrificio e com a exigência de sacrificio que faz pesar sobre  os outros. No entanto já que o Lider não é o tirano – ainda que seja  tiranico – não diz abertamente aos outros o que devem fazer; o Lider não  impõe a sua vontade, mas deixa que se imponha orientado secretamente o  desejo dos outros, que é sempre, em última análise o desejo de os  agradar. À pergunta “Que devo fazer?” o Lider responderá sempre “Aquilo  que quiseres” porque sabe que a sua mesma existência na comunidade  terrivel impede os outros de quererem alguma outra coisa daquilo que  quer ele.
25. 	AQUELE QUE AGE em nome do Pai não poder ser posto em discussão. Onde a  força se transforma em ponto de discussão, o discurso reduz-se a balelas  ou a desculpas. Enquanto existir um Lider – e portanto a sua comunidade  terrivel – nunca haverá parrehsia e os homens, as mulheres e o próprio  Lider estarão em exilio. Não se pode meter em questão a autoridade do  lider enquanto os factos mostrarem que se o ama, ainda que se deteste o  amor que se tem por ele. Acontece que o lider se meta em discussão a si  próprio, e é então que um outro toma o seu posto, ou que a comunidade  terrivel, tendo ficado acéfala, morra de uma lenta hemorragia.
26. 	O LIDER é realmente o melhor do seu grupo. Não usurpa o lugar de  ninguém e todos estão conscientes de tal. Não tem de lutar pelo  consenso, porque é ele que se sacrifica mais ou que é mais sacrificado.
27. 	O LIDER nunca está só, porque todos estão atrás dele, mas é ao mesmo  tempo o icone da solidão, a figura mais trágica e iludida da comunidade  terrivel. È só em virtude do facto do que esteja já à mercê dos outros  (que não estão no seu lugar), que o Lider é por vezes verdadeiramente  amado e preferido.